quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Breve história do TDAH (384)


Referências literárias a indivíduos com graves problemas de desatenção, hiperatividade e fraco controle do impulso remontam a Shakespeare, que fez referência a uma doença da atenção em King Henry VIII. Uma criança hiperativa foi o foco de um poema alemão, "Fidgety Phil", escrito por um médico, Heinrich Hoffman, por volta de 1880. 
Em 1890, William James, em seu livro Principles of Psychology, descreveu uma variante normal do caráter, que ele denominou de "disposição explosiva", que se assemelha às dificuldades apresentadas pelos que atualmente são chamados de TDAH. 
Porém, o primeiro artigo na literatura médica sobre os transtornos da atenção, tais como o TDAH, foi um curto capítulo sobre esse problema, em um livro de texto médico (no início publicado anonimamente) escrito por Melchior Adam Weikard, em 1775. Weikard era um brilhante médico alemão que descreveu os sintomas de distração, fraca persistência, ações impulsivas e desatenção em geral, muito semelhantes aos sintomas utilizados atualmente para descrever a desatenção associada ao TDAH. 
Esse texto foi seguido por outro, do médico escocês Alexander Crichton, em 1798, que forneceu descrições ainda mais detalhadas desse tipo de desatenção, assim como identificando um segundo transtorno da atenção tido como relacionado ao poder de focalizar a atenção. O interesse mais sério em relação ao TDAH não aconteceu novamente até o aparecimento de três apresentações diante da Royal Academy of Physicians feitas pelo médico George Still, em 1902.

Still relatou sobre um grupo de 20 crianças de sua clínica, que eram definidas como portadoras de um déficit da "inibição volitiva", que levava a um "defeito do controle motor" sobre seu próprio comportamento. Descritas como agressivas, exacerbadas, sem regras, desatentas, impulsivas e hiperativas, muitas dessas crianças seriam, atualmente, diagnosticadas não somente com TDAH mas, também, com transtorno de oposição e desafio (TOD). As observações de Still foram muito astutas, descrevendo muitas das características associadas do TDAH, as quais viriam a ser corroboradas pelas pesquisas do século seguinte: 
(1) um predomínio do sexo masculino (taxa de 3:1 na amostra de Still); 
(2) alta comorbidade com conduta anti-social e depressão; 
(3) uma associação com alcoolismo, conduta criminosa e depressão entre os parentes biológicos; 
(4) uma predisposição familiar para o transtorno, provavelmente uma origem hereditária;
(5) ainda com a possibilidade do transtorno também aparecer por lesão adquirida do sistema nervoso central.

O interesse nessas crianças cresceu na América do Norte por volta da época da grande epidemia de encefalite de 1917-1918. As crianças sobreviventes dessas infecções cerebrais tinham muitos problemas de comportamento, semelhantes àqueles do TDAH contemporâneo. Esses casos, e outros sabidos como tendo aparecido por trauma de parto, trauma de crânio, exposição a toxinas, e infecções, deram nascimento ao conceito de síndrome da criança com lesão cerebral (Strauss & Lehtinen, 1947), geralmente associada a retardo mental, que eventualmente se tornaria aplicado a crianças que manifestassem esse mesmo comportamento, mas sem evidência de dano cerebral ou de retardo mental. Esse conceito evoluiu para o de lesão cerebral mínima, e eventualmente para disfunção cerebral mínima, conforme as críticas eram dirigidas ao rótulo original em vista da carência de evidências de lesão cerebral óbvia na maioria desses casos.

Entre 1950 e 1970, o foco mudou para longe da etiologia e em direção ao comportamento mais específico da hiperatividade e fraco controle do impulso, que caracterizam essas crianças, refletido em rótulos como "transtorno hipercinético impulsivo" ou "síndrome da criança hiperativa". O transtorno foi tido como surgindo de uma super-estimulação cortical devido a fraca filtração talâmica dos estímulos que chegavam ao cérebro. A despeito da crença contínua entre os clínicos e pesquisadores dessa época de que a condição tinha algum tipo de origem neurológica, a grande influência do pensamento psicanalítico mantinha o domínio. Assim, quando do aparecimento da segunda edição do DSM, todos os transtorno das crianças foram descritos como "reações", e a síndrome da criança hiperativa tornou-se a "reação hipercinética da infância".

O reconhecimento de que o transtorno não era causado por lesão cerebral pareceu seguir um argumento semelhante feito algo mais anteriormente pela eminente psiquiatra da infância, Stella Chess, em 1960. Ele estabeleceu uma grande separação entre os profissionais da América do Norte e os da Europa, que continua, em menor extensão, até o presente. A Europa continua a ver a hipercinesia, por quase toda a segunda metade do século 20, como uma condição relativamente rara de extrema hiperatividade, geralmente associada a retardo mental ou a evidência de dano cerebral orgânico. Essa discrepância de perspectivas tem convergido nas últimas décadas, como evidente na semelhança de critérios do DSM-IV e os do CID-10, da Organização Mundial da Saúde, em 1994. Todavia, o modo como os clínicos e os educadores vêem o transtorno permanece muito diferente; na América do Norte, Canadá e Austrália, tais crianças têm TDAH, um transtorno do desenvolvimento, enquanto na Europa elas são vistas como tendo um problema ou transtorno de conduta, um distúrbio de comportamento tido como surgindo principalmente de disfunção familiar e de desvantagens sociais.

Nos anos 70s, a pesquisa enfatizou os problemas com a sustentação da atenção e o controle do impulso, além da hiperatividade. Douglas teorizou que o transtorno tinha 4 déficits principais: (1) o investimento, organização e manutenção da atenção e do esforço; (2) a habilidade de inibir o comportamento impulsivo; (3) a habilidade de modular os níveis de atenção para atingir as demandas situacionais; e (4) uma inclinação forte e incomum para obter o reforço imediato. A ênfase de Douglas na atenção e os numerosos estudos de atenção, impulsividade e outras sequelas cognitivas que seguiam, eventualmente levaram a renomear o transtorno como transtorno de déficit de atenção (TDA). Significativa, do ponto de vista histórico, foi a distinção da DSM-III entre dois tipos de TDA: os com hiperatividade e os sem ela. Existia pouca pesquisa, naquela época, em relação ao segundo subtipo, que suportasse a feitura de tal distinção em taxonomia diagnóstica oficial e com prestígio crescente. Porém, em retrospectiva, essa vaga afirmação levou a pesquisa de valor sobre as diferenças entre essas duas supostas formas de TDA, que, de outro modo, nunca teria sido evidenciada. Essa pesquisa pode ter sido acidental, como pode ter levado à conclusão que uma parte dos que têm TDA sem hiperatividade podem na verdade exibir um outro transtorno separado, distinto e qualitativamente único, em vez de um subtipo do TDAH; um transtorno nomeado como "sluggish cognitive tempo" (SCT).

Mesmo assim, depois de poucos anos da criação do nome TDA, apareceu a preocupação de que importantes características da hiperatividade e do controle do impulso estavam sendo menos valorizadas, quando, de fato, elas eram de importância crucial para diferenciar o transtorno de outras condições e para prever os riscos de desenvolvimento mais tardio. Em 1987, o transtorno foi renomeado como Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, no DSM-III-R, e uma lista única de itens incorporando todos os três sintomas foi especificada. Também foi importante a colocação da condição TDA sem hiperatividade, renomeada transtorno de déficit de atenção indiferenciado, em uma secção separada do TDAH no manual, com a especificação de que existia pesquisa insuficiente para guiar a construção de critérios de diagnóstico para ela, naquela época.

Durante os anos 80s, os relatos focalizavam os problemas com a motivação em geral e a falta de sensibilidade para responder às consequências, especificamente. A pesquisa demonstrava que sob certas condições de recompensa contínua, o desempenho de crianças com TDAH era geralmente indistinguível do das crianças normais, em várias tarefas de laboratório, mas quando os pacientes que recebiam reforço eram colocados em reforço parcial ou em condições de nenhum reforço, as crianças com TDAH mostravam significativo declínio em seu desempenho. Também foi observado que déficits no controle do comportamento por regras caracterizavam essas crianças.
Na década seguinte, os pesquisadores empregaram paradigmas de processamento da informação para estudar o TDAH e descobriram que os problemas na percepção e no processamento da informação não eram tão evidentes quanto os problemas com a motivação e a inibição da resposta. Os problemas com a hiperatividade e a impulsividade também foram vistos como uma única dimensão do comportamento, o que foi descrito por alguns como "desinibição".

Tudo isso levou à criação de duas listas separadas, mas altamente correlacionadas, de sintomas e limiares para o TDAH, quando a DSM-IV foi publicada mais tarde, naquela década; uma para desatenção e outra para o comportamento hiperativo e impulsivo. Diferente de sua antecessora, DSM-III-R, o estabelecimento da lista da desatenção mais uma vez permitiu o diagnóstico de um subtipo de TDAH que consistia principalmente em problemas com a atenção (TDAH do tipo predominantemente desatento). Também permitiu, pela primeira vez, a distinção de um subtipo de TDAH que consistia principalmente de comportamento hiperativo e impulsivo, sem desatenção significativa (TDAH do tipo predominantemente hiperativo-impulsivo). Crianças com problemas significativos em ambas as listas de itens, que constituem a maioria dos pacientes, foram intituladas de TDAH do tipo combinado.

Atualmente isso foi superado pelo desenvolvimento e publicação do DSM-V, em 2013. Ele contém várias alterações discutidas em mais detalhes em outro capítulo desse curso. Basta dizer aqui que embora os mesmos sintomas permaneçam como no DSM-IV, o esclarecimento deles para crianças mais velhas (adolescentes) e adultos foram adicionadas em parênteses junto a cada sintoma, a idade de início foi aumentada para 12 anos, um nível mais baixo de limiar de 5 sintomas foi requerido dos adultos (em vez dos tradicionais 6 sintomas usados para crianças), e os subtipos foram eliminados, uma vez que a pesquisa nos 18 anos anteriores não achou que eles eram confiáveis e estáveis no decorrer do desenvolvimento, válidos e, por isso, úteis. Quer dizer, são inúteis. O TDAH, agora, é reconhecido como um transtorno único, que varia de gravidade em meio às duas altamente relacionadas dimensões de sintomas, em vez de compreender três tipos distintos do transtorno. Atualmente os clínicos simplesmente especificarão qual grupo de sintomas é mais predominante pela qualificação do diagnóstico com uma "apresentação", tal como "apresentação predominantemente desatenta".

A discussão sadia continua até o presente a respeito do núcleo deficitário no TDAH, com peso aumentado sendo dado aos problemas com a inibição do comportamento, auto-regulação, e o domínio relacionado das funções executivas, assim como a dificuldade de esperar pelos acontecimentos e os mecanismos energético-cognitivos.  Os sintomas da desatenção podem na verdade ser a evidência de uma memória de trabalho deficiente e não de problemas com a percepção, filtragem ou seleção das aferências. Da mesma forma, continua a controvérsia sobre o lugar de um subtipo composto primariamente por uma forma distinta de desatenção, chamada "sluggish cognitive tempo" (SCT), que é composta de sonhar acordado, olhar perdido no espaço, processamento lento, letargia e hipoatividade, dentro da condição maior do TDAH, com alguns argumentando que para ele ser um novo e único transtorno diverso do TDAH. O SCT não aparece no DSM-V porque mais pesquisa é necessária para que essa condição seja identificada com justiça como um novo transtorno psiquiátrico.
Entretanto, a pesquisa feita até o momento parece estar bem no caminho de fazer isso.

Russel A. Barkley

http://www.continuingedcourses.net/active/courses/course003.php 

[Se você, que tem TDAH, conseguiu ler até o fim, parabéns.]

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