Por Suzana Herculano-Houzel
As tirinhas do menino Calvin e seu tigre de
pelúcia, Haroldo, desenhadas pelo americano Bill Waterson, me acompanharam pela
adolescência. Calvin sempre é retratado como um menino inteligente, criativo,
espirituoso, de espírito saudavelmente rebelde, e com uma certa preferência por
viajar por outros planetas a ouvir a professora falar.
Mas algum fã resolveu
"tratar" Calvin de uma suposta doença, e na tirinha adulterada, fácil
de achar na internet, os diálogos mostram Calvin, medicado, tratando Hobbes
laconicamente, sem querer brincar, até que Hobbes volta a ser apenas o tigre
que é.
A impressão que fica é de uma tentativa de protesto contra a suposta
"medicalização" das crianças e jovens hoje em dia. O pior é que há
até quem acredite no diagnóstico: Calvin sofreria de distúrbio de déficit de
atenção.
Eu protesto duplamente, como neurocientista e como leitora. A tirinha
modificada pressupõe que Calvin só poderia ser criativo e brincalhão se
sofresse de DDA, e pior, ainda perderia sua criatividade se fosse tratado com
medicamentos. Trata-se de um desserviço àquelas pessoas que sofrem realmente do
transtorno e precisam de tratamento, pois fica a impressão negativa de que
corrigir o déficit de atenção equivale a fazer uma lobotomia.
Quem sofre do
transtorno, ou acompanha de perto alguém afligido, sabe que a verdade é bem
diferente. Ou, pior, sofre sem saber que poderia se tratar e não sofrer mais.
Entre 0,5 e 5% da população, dependendo dos critérios diagnósticos usados,
sofre de um legítimo déficit de atenção, associado a um funcionamento subnormal
dos sistemas dopaminérgicos e noradrenérgicos que servem à alocação do foco de
atenção e sua manutenção sobre o alvo da vez, resistindo a distrações ao redor.
Não é surpresa, portanto, que essas pessoas sejam facilmente distraídas,
sucumbindo a qualquer novidade que passar pela frente ao invés de se concentrar
no trabalho ou dever de casa. Por causa dessa dificuldade de sustentar a
atenção, ler um texto até o fim é uma tarefa que pode durar horas e se tornar
desmotivante, levando a desinteresse e a uma aparência de preguiça, dificuldade
de memória e de aprendizado.
Pior ainda, para a criança que sofre desse
déficit, é a falta de informação dos pais e professores, que reclamam de um
comportamento que não depende de escolha da criança. Retorno negativo, na forma
de comentários do tipo "você é preguiçoso" ou "você não está se
esforçando", só faz criar uma autoimagem ainda mais negativa, daquelas que
se tornam profecias autorrealizáveis.
Para quem consegue ser atendido por um
bom profissional que reconhece o problema e oferece tratamento, contudo, a vida
muda da água para o vinho. A criança, o jovem ou adulto finalmente descobre o
que é a vida "normal", em que é possível manter o foco da atenção em
um mesmo assunto por mais do que poucos segundos; onde é possível fazer uma
prova em poucas dezenas de minutos, e não horas; onde é possível ler um livro
enquanto outras pessoas conversam na sala. Poder tomar remédio, quando o
remédio é necessário, é uma maravilha para quem sofre de déficit de atenção.
Quem tiver dúvida é só perguntar a eles.
Não vejo o tal "problema da
medicalização da infância" de que falam alguns psicanalistas. Vejo, sim, o
problema dos maus profissionais, seja psicólogos, médicos, professores ou pedagogos,
que tacham um diagnóstico errado em pessoas que sofrem de outros problemas, não
tratáveis com os medicamentos que trazem tanto alívio para quem realmente tem um
déficit de atenção verdadeiro.
SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista,
professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autora do livro Pílulas
de neurociência para uma vida melhor (Sextante, 2009). Publicado na revista Scientific American MENTE E CÉREBRO jan/2015 pg. 16
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