Uso indiscriminado do medicamento é comum no
vestibular e em faculdades. Marcela Donini
Depois das férias de inverno do cursinho pré- vestibular, um estudante
de medicina de Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul, decidiu tomar
Ritalina para melhorar o rendimento nos estudos. Ele conseguiu o medicamento
com uma amiga e tomou os comprimidos por 20 dias.
Sem acompanhamento médico, ele conta que não sentiu nenhuma melhora no
seu desempenho e lembra que, em dois anos de cursinho específico para
medicina, viu muitos colegas usarem o remédio igualmente de forma
indiscriminada, normalmente por meio de uma receita conseguida com um
conhecido. “Diziam que melhorava na hora de estudar, mas sempre chegava o
momento de aumentar a dose. Quando paravam de tomar, o desempenho acabava sendo
menor do que antes da medicação."
Depois que passa no vestibular, boa parte dos alunos de medicina, no
caso da Universidade de Santa Cruz (Unisc), seguem se automedicando. A
coordenadora pedagógica do curso de medicina da instituição, Giana Diesel
Sebastiany, conta que, desde quando começou a acompanhar o processo de seleção,
em 2006, tem se surpreendido com o uso abusivo de Ritalina entre os estudantes.
Tanto que a Comissão de Vestibular, desde 2014, mudou algumas regras no edital.
Atualmente, os candidatos somente podem fazer uso de medicações durante a
prova, com duração de cinco horas, mediante apresentação de receita médica.
A automedicação com Ritalina também é percebida entre os estudantes que
já estão na universidade, especialmente em cursos com alto nível de exigência,
como medicina. “Por serem estudantes, inclusive os da área da saúde, já
deveriam saber avaliar os prós e contras do uso de medicamentos”, afirma a
psicóloga do curso de medicina da Unisc, Carina Kirst.
Para ela, a questão do uso excessivo de medicamentos na busca de uma
performance melhor no dia a dia está ligada à "ditadura do
bem-estar". “Como se todos precisassem responder da mesma maneira
positiva, ao mesmo tempo, a todas às intempéries da vida. Neste ponto, entram
as medicações que atuam sobre nosso comportamento”, diz Carina.
Levando em conta esse quadro, a Unisc promove ações de conscientização e
reflexão sobre o uso indiscriminado de medicações, com espaços de discussão,
rodas de conversa em semanas acadêmicas dos cursos de saúde e também
intervenções individuais.
Outros casos
O publicitário Guilherme Lemos, 23, usou Ritalina pela primeira vez quando
precisava terminar seu trabalho de conclusão de curso da faculdade, em Porto
Alegre. “Eu consegui com um amigo que tinha receita. Dava o dinheiro, e ele
comprava pra mim. Ele me dava uma cartela que vinham 20 comprimidos e ficava
com as outras para consumo próprio”, conta.
A maratona para se manter acordado e terminar seu trabalho levou quatro
dias, tomando uma quantidade maior por dia do que se costuma recomendar, junto
com café e energético. Sem nenhuma orientação médica, durante o período, ele
dormia em torno de quatro horas por dia. Ele afirma que sentiu melhora na sua
concentração, mas ao custo de efeitos colaterais. “Eu não conseguia comer
praticamente nada, só bebia líquidos e tive taquicardia. Era um mal-estar
constante”.
Guilherme voltou a tomar a medicação em outros três momentos, quando
precisava terminar trabalhos com pouco prazo. “Funcionou mais nas primeiras
vezes do que na última. O ruim é que eu sentia um mal-estar no estômago, algo
parecido com uma cólica”, afirma. Ele afirma que amigos seus também utilizam
Ritalina sem prescrição médica por curtos períodos, geralmente para estudar.
Diferentemente de Guilherme, Phelipe Nascimento, 22, tomou Ritalina para
estudar para o vestibular mas não pretende fazer isso de novo. “Soube do
potencial da Ritalina em uma reportagem de uma revista. Na época minha tia
possuía a receita. Eu simplesmente pedi alguns e ela me deu”.
Ele usou duas vezes e conta que teve uma "grande concentração"
durante cerca de meia hora, mas que depois foi diminuindo. “Não me
arrependo, mas não tomaria novamente. O efeito passou muito rápido e tive
taquicardia. Na minha opinião, a relação custo x benefício não vale a pena”,
afirma Phelipe. O jovem passou no vestibular e hoje é estudante de Engenharia
de Gestão, na Universidade Federal do ABC, em São Paulo. Mas ele garante que
"não foi pelo uso da medicação".
Sem função em cérebros saudáveis
Uma pesquisa realizada na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em 2012,
revelou que a Ritalina não produz efeito em pessoas sem o Transtorno de Déficit
de Atenção e Hiperatividade (TDAH). O estudo contou com a participação de 36
voluntários saudáveis, com idade entre 18 e 30 anos, que ingeriram um
comprimido sem saber se era Ritalina ou placebo e realizavam testes de memória
e atenção durante duas horas.
O desempenho de ambos foi similar, o que comprova que a Ritalina não
aumenta a capacidade cognitiva de pessoas saudáveis. “O que nós observamos
foi uma sensação de bem-estar geral em quem tomou uma dosagem alta, de 40mg.
Elas não ficaram tão cansadas com o teste”, afirma a coordenadora do
estudo e pesquisadora do departamento de psicobiologia da Unifesp, Silmara
Batistela.
Isso porque, segundo ela, a Ritalina é um estimulante cerebral, que pode
aumentar o tempo de estudo, mas não a capacidade de concentração. Ela ressalta
que o remédio interfere no sistema cardiovascular e, por isso, não deve ser
utilizado sem orientação médica. Antes de participar da pesquisa, os voluntários
passaram por uma bateria de exames que mostrou se eles poderiam tomar a
medicação.
Além disso, Silmara explica que o uso da Ritalina com o objetivo de passar
mais tempo estudando é um grande equívoco, já que o sono é muito importante
para a consolidação da memória. “Tudo o que a pessoa estudou vai ficar pouco
tempo na memória. Diferente de quando se estuda um pouco, dorme e respeita o
próprio organismo”, explica. Segundo ela, o uso indiscriminado de Ritalina pode
acarretar em problemas no cérebro, visto que é um órgão delicado e complexo.
“Não é saudável tomar um remédio sem necessidade. As pessoas acabam
desregulando algo que funcionava bem e gerando complicações a longo prazo”.
Saiba mais sobre o medicamento
O medicamento tem como princípio ativo o metilfenidato, substância química
estimulante que ajuda a focar e contribui para a capacidade de concentração.
Por isso é utilizado no tratamento do TDAH. Ainda que haja outro medicamento à
base de metilfenidato para tratar o problema, o Concentra, a Ritalina é o mais
tradicional e popular. Existem dois tipos do remédio: a de curta duração
(Ritalina) e a de longa duração (Ritalina LA).
A primeira é eliminada do organismo em cerca de três horas; a segunda,
aos poucos durante o dia, e o paciente geralmente ingere menos comprimidos por
dia. As miligramas e a quantidade de comprimidos por dia são indicados pelo
médico, que avalia de acordo com o peso e a idade do paciente.
Segundo dados do Boletim de Farmacoepidemiologia da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa), divulgados em 2013, o consumo de Ritalina
aumentou 75% em pessoas com idade de 6 a 16 anos, entre 2009 e 2011, no Brasil.
Contudo, esse grande salto no consumo de Ritalina também se deve a quem não tem
diagnóstico de TDAH e usa o remédio com o propósito de potencializar os
estudos.
Apesar de ser um medicamento controlado, que necessita de indicação
médica, a Ritalina é facilmente encontrada no mercado clandestino. Em uma
rápida busca pelo remédio na internet, é possível encontrar sites que vendem
esta e outras medicações controladas sem receita. Mas pelos depoimentos dos
estudantes, o que parece ser mais comum mesmo é a distribuição entre amigos: alguém
diagnosticado com TDAH tem a receita, compra e repassa aos colegas.
http://noticias.terra.com.br/educacao/sem-receita-estudantes-relatam-uso-indiscriminado-de-ritalina,0cc8fe2d52f9432f1ee000cf59fce15339t9RCRD.html