Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) é um diagnóstico válido para adultos?
Dr.
Sivan Mauer -
29
de agosto de 2017
Nos
últimos anos observa-se um aumento significativo no número de
pacientes diagnosticados com transtorno de déficit de atenção e
hiperatividade (TDAH), e consequentemente um aumento de
prescrições e do uso de anfetaminas, drogas que são
consideradas de primeira linha para o tratamento do transtorno. Um
estudo mostra que de 2002 a 2007 a incidência do diagnóstico
triplicou, principalmente entre indivíduos com idades entre 18 e
24 anos. O maior aumento de prescrição deste tipo de droga foi
no grupo de adultos jovens (de 2,3% para 4%), sendo que 65% das
prescrições são de metilfenidato.
Existe,
porém, uma grande controvérsia sobre a validade desse
diagnóstico em adultos. Para entender o porquê do aumento na
incidência deste diagnóstico e do questionamento da validade
dele, é preciso relembrar ao menos dois conceitos: os validadores
diagnósticos de Robins e Guze, e o conceito de temperamento.
Os
validadores do diagnóstico de Robins e Guze foram descritos nos
anos 1970 em relação à esquizofrenia e são: sintomas, curso da
doença, resposta ao tratamento e genética/história familiar.
Infelizmente estes conceitos se perderam com o lançamento do
DSM-III, em 1980.
Os
sintomas centrais do TDAH em adulto são hiperatividade ou
agitação psicomotora, falta de atenção e impulsividade, como
no TDAH na criança. Algumas mudanças foram feitas no DSM-V, além
de oficialmente aceitar o diagnóstico de TDAH em adultos, o que
não ocorria até o DSM-IV. Anteriormente eram necessários seis
dos nove sintomas de falta de atenção e/ou
hiperatividade/impulsividade. Hoje são necessários apenas cinco
para adultos e adolescentes acima dos 17 anos. Alguns críticos
sugerem que o diagnóstico de TDAH em adultos seria um conceito
equivocado por vários motivos, entre eles a presença de
temperamentos afetivos.
Frequentemente
pessoas com temperamentos hipertímicos e ciclotímicos irão ter
dificuldades atencionais, devido a constantes ou frequentes
estados maníacos e depressivos. TDAH pode refletir o
subdiagnóstico destas condições. A distração, por exemplo, é
um dos sete critérios para mania do DSM. Um estudo com 1380
sujeitos identificou que distração é o sintoma mais associado a
mania ou mania subsindrômica.
Agitação
psicomotora ou hiperatividade, que é central para os transtornos
afetivos desde Kraepelin, é também outro sintoma que se sobrepõe
ao diagnóstico de TDAH. A inabilidade de adiar gratificação, ou
impulsividade, é também um dos critérios para o diagnóstico do
TDAH, mas impulsividade é muito comum no curso dos transtornos
afetivos em episódios maníacos e depressivos. Em suma, todos os
sintomas do TDAH no adulto se sobrepõem com sintomas de
transtornos afetivos.
Previamente
no DSM-IV, para o diagnóstico de TDAH era necessário que alguns
sintomas se manifestassem até os sete anos de idade. Hoje, no
DSM-5, essa idade passou para 12 anos, o que significa que o TDAH
pode iniciar na adolescência. Existem alguns estudos sobre a
persistência do diagnóstico até a idade adulta, mas a maioria
deles não corrige para "comorbidades", isto é, outros
diagnósticos poderiam causar os mesmos sintomas do TDAH.
Entretanto,
a maioria dos pesquisadores concorda que os sintomas diminuem na
idade adulta. Uma explicação possível é que pacientes com
TDAH têm atraso na maturação cortical. Dois estudos do mesmo
grupo observaram um atraso principalmente na região pré-frontal,
que é importante para o controle cognitivo, incluindo atenção
e planejamento motor. Outra hipótese, sustentada por diversos
estudos retrospectivos, seria de que as crianças com TDAH na
idade adulta irão mudar o diagnóstico para transtornos
afetivos.
O
estudo de coorte prospectivo mais recente iniciou o
acompanhamento em 1993 de 5.249 sujeitos que foram seguidos do
nascimento até a idade adulta com 18 anos. Aos 11 anos eles
foram triados para TDAH, dos quais 8,9% preencheram os critérios
para a "doença". Esta triagem foi repetida aos 18 anos
e 12,2% preencheram os critérios para TDAH. A questão mais
importante na metodologia deste estudo é que os autores não
ignoraram as comorbidades. Quando os autores ajustaram os
resultados levando em conta as comorbidades, que também poderiam
provocar alteração da atenção, a prevalência aos 18 anos de
idade caiu para 6,3%. Os transtornos afetivos e condições
ansiosas são a causa aparente de 50% dos diagnósticos de TDAH
no adulto.
As
doenças psiquiátricas são altamente hereditárias. Uma revisão
sistemática concluiu que as duas doenças mais hereditárias são
o transtorno afetivo bipolar e a esquizofrenia, com
respectivamente 85% e 81% de hereditariedade. Em relação ao
TDAH as últimas revisões sugerem uma hereditariedade de 35%, o
que é considerado baixo.
Anfetaminas,
como o metilfenidato e dexanfetamina, são o "padrão-ouro"
para o tratamento do TDAH em adultos. As anfetaminas são drogas
bastante controversas. Alguns estudos mostram resposta destas
drogas em controles sem TDAH. Esta questão para muitos autores
invalidaria este critério como validador de diagnóstico, já
que todos teriam respostam parecidas com a medicação. Um estudo
randomizado com jogadores de xadrez sem TDAH comparou modafinila,
metilfenidato, cafeína e placebo. No final do estudo, modafinila
melhorou o desempenho em 15%, metilfenidato em 13%, cafeína em
9% e placebo em 0%. Além disto, as anfetaminas têm se mostrado
neurotóxicas em estudos com animais. Em humanos, ressonância
magnética estrutural tem mostrado que cérebros de crianças com
TDAH não tratadas com estimulantes apresenta mais rápido
engrossamento e menor volume de substância branca do que
crianças com TDAH tratadas com estimulantes.
Os
mecanismos responsáveis pela neurotoxicidade das anfetaminas não
estão totalmente compreendidos. Possíveis hipóteses passam por
intenso estresse oxidativo, aumento do corticosteroide como
resposta ao estresse, diminuição da sobrevivência das novas
células do hipocampo, e alteração dos circuitos pré-frontais.
Outra importante evidência é que as anfetaminas têm uma alta
associação com mania/hipomania. Em um estudo americano esta
taxa chegou a 40%. Ressalta-se também que estas medicações
podem piorar os sintomas dos temperamentos hipertímicos e
ciclotímicos. Paradoxalmente, podem até agravar a atenção
nesses
pacientes com a piora dos sintomas maníacos.
Para
finalizar, poderíamos ainda incluir o conceito de diagnóstico
hierárquico, no qual diagnósticos só devem ser feitos com
exclusão de outros que poderiam causar sintomas similares. O
exemplo clássico é a neuro sífilis, que causa quadros de
mania, depressão e demência. O conceito de diagnóstico
hierárquico na psiquiatria resolveria a questão das
comorbidades e, consequentemente, a polifarmácia tão
incentivada pelo sistema DSM. Um estudo concluiu que existe
sobreposição diagnóstica em 54% dos diagnósticos envolvendo
transtorno bipolar, transtorno de personalidade borderline
e
TDAH. Uma questão bastante interessante são os níveis
parecidos de ciclotimia nas três condições, o que
provavelmente justifica a labilidade afetiva como marca comum
entre elas.
É
bastante difícil entender o TDAH em adultos como um diagnóstico
válido, se aplicarmos os validadores de Robins e Guze e o
conceito de diagnóstico hierárquico. Na verdade, como exposto
acima, todos os sintomas do TDAH se sobrepõem a sintomas de
humor, além da resposta ao tratamento ser completamente
inespecífica, e a hereditariedade baixa. Seria mais justo
entender estes sintomas como parte de outros transtornos. Mas,
infelizmente, a partir do DSM-III a psiquiatria passou
massivamente a tratar sintomas, e não doenças.
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este artigo: Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade
(TDAH) é um diagnóstico válido para adultos?
Medscape
- 29 de agosto de 2017.