Professor Dr. Luis Augusto Rhode em entrevista nas páginas
amarelas de VEJA. - Por Adriana Dias
Lopes
O
brasileiro que ajudou a fazer o novo manual americano de psiquiatria diz que
apenas uma em cada quatro pessoas com transtornos é diagnosticada e tratada
adequadamente.
Em 2007, o psiquiatra gaúcho Luis Augusto Rohde, de 48 anos,
recebeu um convite até então inédito para um médico brasileiro. Diretor do
Programa de Déficit de Atenção e Hiperatividade da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, ele foi convidado pela reputada Associação Americana de
Psiquiatria a contribuir para a atualização do Manual Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais, o DSM, o mais respeitado documento científico da
psiquiatria mundial, em sua quinta versão. Na fase final de edição da cartilha,
Rohde fazia parte de um grupo internacional de 160 especialistas. Eles se reuniam
-algumas vezes por teleconferência, outras pessoalmente - de quinze em quinze
dias para discutir os progressos na detecção de doenças da mente nos últimos
vinte anos. O DSM-5 foi lançado em maio, pleno de controvérsias. Nesta
entrevista a VEJA, Rohde discute as novidades do trabalho - e indica que
mudanças ele representará para a medicina.
O que
há de realmente novo e significativo no recente manual americano de
diagnóstico?
Ele estabelece uma nova maneira de o médico diagnosticar a
doença mental. Hoje, a maioria dos psiquiatras tende a se centrar na hipótese
principal de diagnóstico - ou seja, a mais grave ou a queixa que motivou o
paciente a procurar um profissional. O novo manual, o DSM-5, no entanto,
determinou que um transtorno psiquiátrico não precisa ter um único e solitário
foco de atenção. O resultado não pode ser exageradamente categórico. As
informações na psiquiatria são extremamente subjetivas, diferentemente do que
ocorre em outras áreas da medicina. Para completar o quadro de complexidade,
são raríssimas as vezes em que um transtorno se manifesta de forma isolada.
Cerca de metade dos doentes psiquiátricos é portadora de pelo menos dois
transtornos. Nos casos mais graves, isso ocorre 80% das vezes. Tal mecanismo
faz parte intrínseca da formação cerebral. As doenças mentais precisam ser
avaliadas na forma mais ampla possível. O médico deve abordar absolutamente
todas as possibilidades. Há treze grandes áreas a ser verificadas. Entre elas,
o nível de atenção, a ansiedade, o humor, as psicoses, a cognição e a interação
social.
Um
paciente com transtorno do humor bipolar e com transtorno de ansiedade, por
exemplo, deve passar pela mesma abordagem médica?
Muitos pacientes são tratados a vida toda como portadores de
bipolaridade, quando, na verdade, sofrem também de transtorno de ansiedade.
Mas, sem tratar a ansiedade, eles dificilmente conseguirão manter uma rotina
dentro dos padrões de normalidade. Uma abordagem mais ampla, investigativa,
reduz a possibilidade de erro no diagnóstico. Talvez as empresas responsáveis
por reembolsos médicos não gostem muito dessa postura, por implicar consultas
longas. Mas assim deve ser.
A nova
abordagem poderá levar a uma explosão do registro de doenças mentais?
Sim. Haverá um aumento no reconhecimento das doenças dentro
dos consultórios, já que a nova forma de diagnóstico ajudará o médico a fazer
uma detecção mais fidedigna dos problemas que não eram tratados ou eram
tratados incorretamente. Mas um ponto tem de ficar muito claro: cada alteração
desse manual é resultado de uma minuciosa e intensa análise do que está sendo
proposto na literatura de primeira linha. O objetivo nunca foi e nunca será
aumentar ou reduzir o espectro de doenças diagnosticáveis. O psiquiatra
americano Allen Frances, professor emérito da Universidade Duke e editor-chefe
da versão anterior do manual, afirmou que o DSM-5 estimula a frouxidão nos
limites entre transtorno mental e normalidade. Consequentemente, haveria um
aumento no número de pessoas submetidas a tratamentos psiquiátricos sem
necessidade.
E não é
o que pode acontecer?
Em minha opinião, Frances tinha uma expectativa de continuar
no comando do DSM-5. Mas suas críticas acabaram de certa forma exercendo um
papel decisivo. Elas nos estimularam a ser absolutamente transparentes. Nunca
na história da elaboração de um manual de psiquiatria houve tal comportamento.
Todas as decisões passaram por avaliação da classe médica do mundo todo. Os
novos critérios foram submetidos três vezes ao site da Associação Americana de
Psiquiatria e receberam milhares de sugestões. Mas a crítica em si de Frances é
completamente infundada. O risco de afrouxamento sempre existiu, desde as
primeiras tentativas de catalogar as doenças psiquiátricas, na década de 50,
com o DSM-1. É o que acontecerá até termos marcadores biológicos na
psiquiatria.
Eles já
foram identificados?
A grande meta inicial do DSM-5 era mudar o paradigma da
psiquiatria justamente com a adoção de marcadores biológicos que facilitassem o
diagnóstico. Mas, infelizmente, isso ainda não é possível. O que conseguimos
fazer foi agrupar algumas doenças conforme um marcador. Mas não indicá-lo como
triagem. A esquizofrenia, por exemplo. Sabe-se que os pacientes tendem a ter
níveis de dopamina alterados. Mas, entre os doentes, há também aqueles que
possuem quantidades normais do neurotransmissor. Assim como há pessoas com
taxas elevadas que não sofrem de esquizofrenia. Temos de refinar os marcadores.
Acredito que, em dez anos, já teremos marcadores eficazes para algumas doenças
psiquiátricas. Mas isso será assunto para o próximo DSM.
Uma das
mudanças mais polêmicas do DSM-5 refere-se a uma contribuição do seu grupo de
pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sobre o transtorno de
déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). O manual eleva de 7 para 12 anos a
idade em que essa doença continue sendo oficialmente diagnosticada. Qual o
motivo dessa mudança?
Em países como os Estados Unidos, em que o sistema de saúde
segue rigorosamente as orientações do DSM, essa ampliação foi fundamental. Lá,
até então, se o início dos sintomas ocorresse em pessoas com mais de 7 anos, os
médicos não dariam a devida atenção ao caso ou o tratamento não teria reembolso
dos planos de saúde. Dados de grupos internacionais e de nosso grupo, na
universidade Federal do Rio Grande do Sul, no entanto, conseguiram provar que
96% dos casos de déficit de atenção são diagnosticados até os 12 anos. Agora,
nesse caso, eu pergunto: é melhor passar a infância sendo chamada de criança
incompetente, malcriada, preguiçosa, que são julgamentos morais, ou ser vista
como portadora de déficit de atenção? Afirmo que para os primeiros predicados
não há tratamento. Para o último, sim.
Em
fevereiro deste anos, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
divulgou um levantamento mostrando o aumento, entre crianças, de 75% na
prescrição de cloridrato de metilfenidato, o princípio ativo do principal
medicamento contra o TDAH. O que esse aumento significa?
Quando o estudo da Anvisa foi publicado, acusaram os
psiquiatras de exagero na medicação dos portadores de TDAH. Lembro bem que a
situação em Porto Alegre, onde trabalho, foi apontada como dramática, por se
tratar da cidade com o maior índice de prescrição da medicação. Ora, temos em
Porto Alegre o maior centro de pesquisa em déficit de atenção da América do
Sul. Em João Pessoa, em termos de comparação, não há mais que cinco psiquiatras
especializados em crianças e adolescentes. Em que lugar o consumo de
medicamentos para a doença seria maior?
Em Porto Alegre, claro. Mesmo se seguirmos as estatísticas mais conservadoras,
teremos uma subnotificação de TDAH, e, claro, um número enorme de pessoas que
deveriam tomar remédios. Apenas um quarto dos doentes com transtorno de
comportamento está devidamente diagnosticado e tratado no Brasil. [Veja neste blog a postagem 276- O TDAH é subtratado no Brasil]
Mas,
quanto mais avançados são os conhecimentos psiquiátricos, não são maiores os
riscos de medicalização do comportamento?
Esse risco existe, embora não no caso do TDAH. Somos capazes
agora de identificar muitos sintomas dos transtornos em sua fase inicial, e
isso pode tornar os limites entre doença e normalidade mais tênues. Erros de
diagnóstico existem em qualquer área da medicina. Há muita infecção viral sendo
tratada com antibiótico, por exemplo. No entanto, a medicalização do
comportamento, quando feita sem critérios, é má medicina. Nesse sentido, uma
das áreas mais delicadas e nebulosas é a que trata dos transtornos de
sexualidade, quando as fronteiras entre normalidade e patologia sã ainda mais
tênues, como no transtorno do exibicionismo. Exibir o corpo nu, dentro de casa,
com as janelas abertas, por exemplo, sabendo que alguém (um adulto, apenas)
está olhando, pode dar prazer e não ser uma doença. Para ser considerado
distúrbio, o gesto deve nesse caso ser a forma predominante de prazer e também
estar associado ao sofrimento, quando a pessoa sente culpa ou se escraviza àquele
ato.
Quais
foram as principais alterações na classificação das doenças do DSM-5?
Entre as que ganharam um status próprio, estão o ato de
comer compulsivamente, o acúmulo exagerado de objetos desnecessários e o
transtorno disfórico menstrual, uma versão severa da tensão pré-menstrual. Há
também aquelas doenças que estiveram prestes a se tornar
"independentes", digamos assim, como o transtorno da automutilação
não suicida. Mas não encontramos evidências suficientes para alçá-lo a uma
categoria de diagnóstico isolado. A automutilação pode pertencer ao transtorno
fronteiriço da personalidade, mas também pode fazer parte da depressão. A nova
classificação, a meu ver, mais inovadora, no entanto, é o transtorno da
desregulação do humor e do comportamento. A doença deriva do transtorno
bipolar. o transtorno bipolar se caracteriza pela oscilação do humor.
Observamos que os pacientes que sofriam na infância de oscilações crônicas não
desenvolviam bipolaridade na fase adulta - mas, sim, depressão ou ansiedade.
Essas pessoas não são bipolares, portanto. É bem possível que elas não devam
ser tratadas com medicamentos para o transtorno bipolar, como estabilizador do
humor.
Ainda
há resistência ao diagnóstico de doenças mentais?
Os transtornos psiquiátricos são subnotificados como um
todo, sobretudo quando eles se manifestam na infância e na adolescência. Eu
poderia dizer que se trata apenas da falta de psiquiatras especializados. Ainda
existe um enorme preconceito da sociedade de maneira geral - o estigma de que
doença psiquiátrica é sinal de loucura é muito presente ainda. Tal pensamento
fez sentido somente por volta dos anos 70. Além disso, há uma forte influência
de um grupo dentro da psicologia social para quem os transtornos mentais se
configuram apenas como sofrimentos e conflitos emocionais. Ou seja,
simplesmente se descartam os aspectos neurobiológicos das doenças mentais.
Esses profissionais não representam a maioria na psicologia. Mas têm voz ativa
porque ainda ocupam os cargos-chave das associações de classe.
Será
possível um dia a prevenção das doenças psiquiátricas?
Não tenho dúvida sobre isso. Cerca de 60% dos transtornos
psiquiátricos começam na infância. Ao sabermos disso, por que não focar a
identificação precoce dos sintomas, quando a doença é mais fácil de ser
evitada? Citamos um exemplo de prevenção no DSM-5, mas ainda em fase de estudo
- não como proposta de diagnóstico, portanto. É o caso da esquizofrenia. Uma
criança pode apresentar sintomas psicóticos muito breves e sutis, como, por
exemplo, achar que os colegas mexeram em seu estojo. Isso se repete pelo menos
uma vez por semana, durante três meses. Somando-se a isso, a criança passa a
ter dificuldade para dormir . Dificilmente uma mãe considerará a possibilidade
de delírio. Mas, pelo perfil dos sintomas, sabe-se que essa criança terá um
risco até 40% maior de se tornar esquizofrênica em relação à criança que não
apresentou os sintomas. Diagnosticada e tratada, o risco de desenvolver a
doença cai pela metade.
Essas
estatísticas dão a impressão de que todo mundo é meio louco. Afinal,
normalidade existe?
Seis em cada dez pessoas não são portadoras de nenhuma
doença psiquiátrica. ou seja, a maioria é clinicamente normal. E quando digo
isso estou incluindo nos 40% restantes portadores de distúrbios simples como a
dificuldade de dormir no escuro e tiques leves.
VEJA - 31 de julho, 2013